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Direito de liberdade de posse vs direito de viver com liberdade. O que deve prevalecer?

A esquerda deixou de questionar a essência de seu pensamento, assim como a essência do pensamento "de direita" também. As poucas discussões que surgiram não se propagaram pela internet e ninguém tomou providências quanto a isso ao longo de muitos anos. Tal negligência vem cobrar seu preço hoje.

Questões básicas e profundas dos pensadores iluministas foram deixadas de lado e com o acesso a um mundo tecnológico onde corre a informação, damos vozes para as pessoas que nunca tiveram acesso ao pensamento filosófico. Ou seja, grande parte da população ainda vive com conceitos do período medieval.

Faz-se necessário então levantar tais questionamentos e debates. O exercício do raciocínio que deveria ser praticado nas escolas desde cedo precisa, agora mais do que nunca, ser estimulado. Como diz o ditado, "antes tarde do que nunca".

Porquê devemos ter direito absoluto e irrestrito à propriedade?

Um interlocutor incauto responderia que a propriedade é algo que não deve ser tocado, pois algo que nos pertence é algo que "conquistamos", ou seja, uma conquista, um direito.

Oras, mas o exercício exige mais do que o raciocínio simplista da antiguidade. Faz sentido uma "conquista", de quem quer que seja, ser mais importante que uma "vida"? Na pré-história e na antiguidade, tirar a vida de um ser humano era algo muito banal. Muitas vezes porquê fazer o conflito em si acontecer, poderia em dado momento significar defender a própria subsistência. Falamos de um mundo onde o homem não dominava a técnica da natureza e os recursos eram totalmente escassos. Uma realidade que hoje vigora apenas em locais do mundo onde prevalece a miséria absoluta.
 
Fora de locais onde a pobreza aguda abunda por todos os lados, podemos ir além, verificar o que realmente é fundamental em um mundo evoluído, onde um direito de alguém pode conflitar com outro direito de outrem.

Então prossigamos:

O direito conhecido como "direito de propriedade" de um dado indivíduo deve mesmo ser considerado um direito humano fundamental, como o direito à vida? Porquê? 
 
Fiquemos por hora com essa pergunta para mais tarde tentarmos respondê-la. 
 
Vamos agora refletir sobre o direito à "liberdade". Mas vamos além da simples liberdade de "ir e vir", vamos perceber a dependência desse direito com os direitos de "vida" e "dignidade humana".
 
Seria possível ter liberdade sem poder viver? Parece óbvio que uma coisa está diretamente dependendo da outra.
 
Seria possível viver em liberdade, sem ter acesso ao mínimo de recursos para poder comer, ter um teto para poder se abrigar das intempéries do clima, ter boa saúde e oportunidade para estudar e se inserir na sociedade, ter o mínimo de privacidade? 
 
De que adiantaria ter a liberdade para "ir e vir", sem que o indivíduo conseguisse sequer viver com dignidade?
 
Seria possível ter liberdade "de verdade" sendo dependente de terceiros para viver dignamente? Existe liberdade verdadeira sem conseguir ter independência de terceiros?
 
Podemos vislumbrar que seria "direito" de qualquer indivíduo que habite o planeta poder viver com dignidade?
 
Até esse ponto, me parece claro que escondido no termo "liberdade" podemos encontrar um conjunto de direitos inerentes, cujos quais se não respeitados, não faria sentido algum falarmos nele. Ou seja, não faz sentido falar em liberdade sem antes falar em viver com dignidade.

À partir disso, podemos admitir que, em alguma escala o direito de propriedade pode influenciar diretamente e ser necessário para a dignidade da pessoa humana. Mas é preciso frisar que, para essa admissão, estamos destacando um direito de propriedade suficiente apenas para atender essa necessidade de dignidade humana.
 
Se observarmos com cuidado, notaremos que alguém precisa ter propriedade de um alimento, roupas para se proteger e para se sentir digno e inserido na sociedade, objetos para higiene pessoal, artigos para a manutenção de sua saúde, além de um teto para poder morar com decência e para ter certa privacidade. Tudo claro, dentro de um bom senso, dentro de uma realidade mediana relativa a sociedade em que se vive, afinal o que se busca é viver em segurança e com dignidade relativa àquela sociedade.

Talvez tais posses seriam suficientes para que a pessoa pudesse viver com dignidade e até pudesse, à partir de um desejo, construir uma família ou buscar alternativas para ter acesso a algum conforto maior.  
 
Mas será que ter a posse de muito mais bens do que isso seria assim tão fundamental para a vida e para o direito humano?

Hoje no Brasil, o direito à propriedade é previsto na Constituição Federal, assim como o direito à vida, saúde, educação, liberdade e dignidade humana. Porém a sociedade e principalmente as autoridades e as instituições, em sua maioria, dão mais importância ao direito de propriedade, em muitos casos, do que em relação ao direito a outras liberdades e ao próprio direito à vida. 
 
Entretanto, se os recursos disponíveis do planeta em que vivemos são limitados, é óbvio que se alguém ficar com uma maior parte, alguém terá que ficar com uma menor. E que se algumas pessoas ficarem com partes muito grandes, dependendo do tamanho, outras ficarão sem o suficiente para viver com dignidade.
 
Então chegamos a verdadeira questão de fundo comparativo que coloca uma guerra ideológica secular: O direito de propriedade, ao acúmulo de riquezas em grande escala, é tão fundamental quanto o direito a viver com dignidade? Qual direito realmente deveria ser entendido como hierarquicamente superior em importância? Será que  o direito de se apossar de tudo o que aparecer pela frente, todos os recursos do planeta, enquanto houver vontade, em detrimento do direito de um terceiro poder ter uma vida digna, parece um direito razoável? Ou apenas do que é suficiente para se ter uma vida social digna? Até que ponto esse direito de posse desmedida, de acúmulo de riquezas pode ser inabalável tanto quanto o direito de outra pessoa poder viver em liberdade?

Poderíamos como sociedade, exigir a regulamentação do IGF que é um imposto para grandes fortunas já previsto em nossa constituição mas que ainda não foi regulamentado pelo congresso e portanto ainda não é cobrado? Poderíamos exigir que ele tivesse alíquotas gradativas e altas, regras e recursos inteligentes para sua cobrança? E quem sabe ainda a elevação da alíquota do ITCMD para as heranças milionárias, também com um sistema de cobrança mais inteligente, principalmente na era da tecnologia?

Poderíamos ainda exigir algum tipo de regra para evitar que pessoas sozinhas consigam comprar e manter inúmeros bens imóveis, sem utilização, como forma de atacar a especulação imobiliária? 
 
Existem inúmeros imóveis urbanos e rurais parados no Brasil, como casas, apartamentos, terrenos nas cidades, sítios e fazendas em áreas rurais. Parece razoável que uma única pessoa ser proprietária de 100 casas ficando 50 delas fechadas enquanto tantas outras pessoas não tenham onde morar? Qual a finalidade? Parar de trabalhar? Enrriquecer ainda mais? Poderíamos exigir que uma pessoa não mantivesse inúmeras fazendas ou ainda verdadeiros latifúndios, fazendas gigantescas sob sua propriedade, às vezes até subutilizadas ou improdutivas? Embora tudo isso seja previsto em nossa constituição, não vemos vontade política das autoridades em por em prática o que já deveria estar funcionando.

Poderiam existir impostos que criariam quase como um "teto" para o enrriquecimento exagerado, dificultando que uma única pessoa ou grupo familiar passe a dominar sozinha uma fortuna muito grande? O dinheiro arrecadado com esses impostos poderia ajudar a distribuir riquezas dando uma vida minimamente digna de liberdade a todos e mais oportunidades para pessoas pobres ascenderem?

Especialistas da OCDE explicam que o imposto global sobre a riqueza, impostos sobre o património mobiliário e imobiliário, impostos sobre sucessões e doações e impostos progressivos sobre o capital, todos buscam a solução de evitar a concentração exagerada de riquezas e o aumento das desigualdades sociais e uma regulação acertada sobre eles poderia servir como ferramenta eficaz para o problema. Na era da tecnologia da informação, um arranjo bem feito poderia ser uma solução definitiva.

Tais soluções já são buscadas e até praticadas em vários países do mundo com certo sucesso, principalmente na Europa. Entretanto, estas são geralmente criticadas pelos mais ricos em todo o mundo.

O argumento geralmente utilizado é que tais regras desestimulariam o empreendedorismo. Mas será que alguém só estaria estimulado a empreender para ficar bilionário? Não haveriam outras pessoas que deveriam ter a oportunidade de empreender com intuito de melhorarem um pouco de vida, mesmo que não seja para ficarem bilionárias? Será que o planeta seria capaz de comportar 7 bilhões de bilionários empreendedores com sua costumeira estravagança consumista? Haveriam recursos para isso? Porquê devemos continuar a acreditar que alguns humanos são mais dignos que outros? Existem humanos de sangue azul?

Em minha opinião, o direito de posse dos bens e recursos do planeta é aceitável e até necessário em algum ponto. Mas quando se fala em direito de posse, isso deveria ser levado ao cabo? Direito de acúmulo da maioria dos recursos do planeta e da humanidade, por uma meia dúzia de pessoas, enquanto a maioria passa fome e não tem condições de melhora, como ocorre hoje, é razoável? O meu direito não terminaria onde começa o direito do outro? O meu acúmulo de riquezas é tão ou mais importante quanto a vida alheia?

Na minha opinião, não.

O capitalismo levado ao cabo me parece um modelo mais nefasto que o socialismo já experimentado. Embora considero que o capitalismo liberal ou liberalismo econômico ao cabo jamais fora experimentado em qualquer parte do planeta, portanto ainda utópico, de outro lado a planificação da economia levada ao cabo (comunismo) também não chegou a se concretizar em nenhum lugar. Portanto, impossível comparar com precisão qual é pior.

Porém, vejo que sem meio termo, qualquer rumo tomado tende a degradar a democracia e dar poder demasiado a um grupo em detrimento da maioria. Fica muito claro para as pessoas em que ponto o socialismo pode se tornar tirania, pois vivemos no capitalismo e vemos de fora o exemplo claro de Stalin e outros. Entretanto é difícil para quem está vivendo lá no país que tenta imprimir um regime socialista e inserido no contexto, enxergar essa realidade com o mesmo olhar crítico de quem está de fora. E no caso do capitalismo, como as pessoas estão inseridas nesse contexto também fica difícil para elas olharem com visão crítica o suficiente.

Porém, observe que o capitalismo livre, o liberalismo levado ao cabo desidrata o poder da democracia transformando-a em uma espécie de aristocracia ou ditadura disfarçada, onde quem detém muito dinheiro tem também muito poder e cria regras e mecanismos para se perpetuar assim e, em muitos casos, não permitir que outros consigam ascender a mesma condição pois senão esse poder diferenciado dele se esvai.

Principalmente quando vemos o consumismo exacerbado francamente incentivado pelos protagonistas do capitalismo colocar os desejos de posses (muitas vezes desnecessárias) como princípio, meio e fim da dignidade de um ser humano na sociedade. Esse consumismo coloca as pessoas ainda mais como escravas na ciranda econômica onde sempre haverá uma busca obstinada por algo que nunca resultará em satisfação verdadeira.

Então quem tem dinheiro sempre leva vantagem e essa realidade temporária é assimilada pela sociedade como regra inconteste, algo necessário. Assim, essa cultura que toma conta das pessoas adentra as instituições, toma conta dos poderes desde o executivo passando pelo legislativo até o judiciário. Presidente, ministros, deputados, senadores, juízes, todos trabalham pelas regras do capitalismo como se tudo tivesse que girar em torno dessa mesma lógica, respeitando as regras. Mas o dinheiro está no centro dessa lógica e o poder corrompe.

As pessoas desejam incontrolavelmente consumir, possuir algo que, observando alguém que já tem e que jamais poderão ter igual, sentem-se frustradas e em alguns casos até entram em depressão. Então, se uma oportunidade imoral ou até ilegal aparecer, ela agarra, pois o principal em sua cultura íntima é conseguir a posse do bem, sendo que o meio de se chegar a aquilo é o menos importante. Por isso as pessoas sonegam impostos, roubam, matam, se corrompem, violam leis ou quebram regras de qualquer maneira.

De outro lado, quem tem muito dinheiro cria regras, cria tendências, cria leis, burla as leis, ajuda políticos a se elegerem, manda em juízes, etc. Nada coloca limites a quem tem muito dinheiro, pois o poder excessivo corrompe o dono do poder que depois passa a corromper as autoridades (que também desejam posses), enfim, criando um modelo totalitário de poder corrupto onde a ideologia impera praticamente como única para toda a sociedade e ninguém consegue enxergar as alternativas. Lembremos de todas as leis, regras e impostos que já são previstos em nossa constituição, visando a distribuição mais justa das riquezas, mas que na prática nossas autoridades as evitam ou simplesmente ignoram solenemente. Entretanto, se uma pessoa passando fome roubar um pão, o juiz certamente irá aplicar a lei.

Ou seja, o capitalismo é ou não uma ditadura totalitária disfarçada, entranhada em nossas instituições? De que vale mesmo nossa democracia? Adiantou eleger deputados constituintes e fazer uma nova e moderna constituição se admitimos como sociedade que quem mande de fato continue sendo o mesmo grupo de ricassos poderosos de sempre?

Assim são celebrados contratos, cartéis ou acordos de aceitação tácita entre as pessoas dessa sociedade muito rica e poderosa, para que a situação nunca saia do controle.

Na democracia você troca um governante quando ele é ruim ou corrupto, mas quando o dinheiro fala mais alto, não adianta você trocar o governante, pois quem manda é quem tem o dinheiro e neste você não vota de 4 em 4 anos para ele deixar de mandar.

O ricasso só se ferra se ele infringir alguma regra que prejudique outro endinheirado, ou fizer algo que prejudique o acordo tácito existente na sociedade, mas o pobre sempre se ferra e sempre sonha que um dia ele estará no topo da pirâmide. Desta forma, mesmo em crises os ricos e poderosos sempre estarão em condições confortáveis, muito melhor que a maioria que tem enormes dificuldades para melhorar de vida minimamente. Como ninguém vota para tirar o dinheiro do endinheirado poderoso, ele segue no poder vitalício dele e mantém uma dinastia passando o poder de pai para filho como nos impérios.

É por isso que essa discussão precisa ser enfrentada, pois conforme explanado, o capitalismo liberal levado ao cabo, o direito de propriedade sem uma regulamentação sofisticada, sem um limite claro e objetivo, termina por conceder poderes em demasia para um grupo que, além de ditar as regras, não permitirá que muitas pessoas tenham condições de ascender a este patamar, transformando-se em uma ditadura totalitária nefasta, muito pior que as produzidas pelo socialismo no século XX.

É fundamental enfrentar essa discussão.

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